Em 15 de agosto de 2024, realizamos uma entrevista online com o músico Eduardo Rennó, com o objetivo de conhecer mais detalhes sobre sua vivência de amizade e profissional com João Rural. Eles trabalharam juntos em várias iniciativas, com destaque para a atuação de João como produtor, divulgador e assessor de imprensa do Grupo Rio Acima.
Quem é Eduardo Rennó?
Músico, compositor e produtor musical com 40 anos de carreira, Rennó fundou o Grupo Rio Acima em 1982, com a participação de João Rural como produtor, divulgador e assessor de imprensa. Com o grupo, apresentou-se em todo o Vale do Paraíba, sul de Minas Gerais, interior de São Paulo, norte do Paraná e na capital paulista. Gravou três CDs com o Rio Acima: “Rio Acima” (1997), produzido por Rui Motta (ex-baterista dos Mutantes); “Correnteza” (2008), produzido por ele mesmo; e “Cantarolando”, com músicas infantis tradicionais. Como produtor, gravou diversos artistas da região, como o Grupo Piraquara da FCCR, Simões (da dupla Zezé & Simões), Beto Jaguary, Gilson Bambuíra, EllêCarvalho, Quar de Mata, Los Canteros (São Luís do Paraitinga), Luz do Vale e Déo Lopes.
Eduardo, você comentou que João Rural o acompanhou em seus primeiros passos na cidade de São Paulo. Como foi isso?
Sim, desde criança eu via São Paulo pela televisão. Como diz meu amigo Paçoca, “nós somos da idade da televisão”. A geração de hoje é da internet, a dos meus pais era do rádio, e a atual é das redes sociais. Quando fui para São Paulo pela primeira vez, em 1981, fui com meu sogro. Depois, fui com o João algumas vezes em 1982 e 1983, logo no início da nossa amizade.
Ele morou em São Paulo na década de 70, então conhecia tudo: os pontos culturais, os lugares mais interessantes… “Vamos comer o bauru no Ponto Chic!”, ele dizia. E lá íamos nós. “Vamos na Teodoro, na Santa Ifigênia!”. E compramos lá uma mesa de som, pedestais e microfones, os primeiros equipamentos do Rio Acima. Ainda tenho esses pedestais até hoje.
Você mencionou que João tinha uma visão clara de como atuar profissionalmente desde que voltou da faculdade de turismo. Poderia explicar melhor?
João buscava o desenvolvimento cultural e socioeconômico. Ele não pensava em “arte pela arte”, ou seja, fotografar por fotografar, e sim em gerar impacto. A faculdade de turismo lhe proporcionou essa visão de desenvolvimento. Ele se via como parte de um ecossistema e buscava a viabilidade econômica do seu trabalho, assim como eu. No nosso caso, trabalhamos com a profundidade, com a raiz. Com a raiz bem trabalhada artisticamente, a gente consegue viabilizar economicamente também, porque a raiz faz parte do povo, faz parte da cultura.
Como era o envolvimento pessoal dele com o patrimônio imaterial?
João valorizava muito o patrimônio imaterial. Suas pesquisas e andanças lhe proporcionaram essa sensibilidade. Ele se baseava em suas experiências de vida. Quando você observa a trajetória do João, como a doença e a internação prolongada na infância, entende que isso o marcou profundamente. Foi um trauma que talvez explique um pouco dele.
Como o Zé [Vicente] mencionou no documentário, João não podia realizar os mesmos trabalhos que seus irmãos na roça devido à sua saúde. Então, ele ajudava a mãe na cozinha, o que despertou seu interesse pela culinária.
Esse foi um momento de redescoberta para ele, assim como foi para mim. Sabe qual foi a ficha que caiu? A ficha cai quando você olha para você, vê o mundo e se define, se situa nele, entendeu? É a questão do reconhecimento da identidade. Acredito que esse seja o meu caso também. Eu me reconheço naquilo que faço, na minha cultura. É preciso ter esse filtro para discernir o que é da gente e o que é da cultura de massa, o que nos é imposto pelo sistema.
E sobre o trabalho de valorização do patrimônio natural do Vale do Paraíba?
Todo o trabalho dele era ecológico, pois valorizava a casa sustentável, o rio, a horta… As pesquisas sobre os alimentos da Mata Atlântica, o projeto das nascentes do Rio Paraíba, o projeto da Petrobras… Tudo isso foi muito enriquecedor.
No caso do meio ambiente, não sei se ele se propunha inicialmente a fazer tanta coisa. Sua principal preocupação era com o ser humano, com o entendimento dos saberes como patrimônio imaterial. Ele valorizava todos os envolvidos. Sabia que, ao valorizar o patrimônio imaterial, as pessoas poderiam viver dignamente de seu trabalho. Viabilizar economicamente e viver, não gerar riqueza para ficar milionário, mas viver, gerar recurso, viabilizar economicamente.
Tenho a impressão de que João Rural foi uma influência intelectual em seu trabalho, certo?
Sim, como mencionei no documentário, eu fatalmente seria músico, influenciado pelo ecossistema cultural da minha região. Talvez estivesse fazendo o que faço hoje, mas não com tanta intensidade. Éramos muito jovens – eu tinha 19 anos e Jaqueline, 16 ou 17. Recebemos uma carga de informação muito grande e rápida, o que acelerou nosso amadurecimento. Aos 21, 22, 23 anos,a gente estava na estrada tocando, fazendo shows profissionais no sentido de viagem, passagem de som, subindo no palco para tocar com repertório definido, com interação com o público, a gente tinha um show montado e tinha um produto. Eu detesto esta palavra para falar em relação a cultura, mas nós já tínhamos uma coisa para entregar para as pessoas. A questão da música, culturalmente falando, estava pronta, estava nascendo. A partir do momento que foi nascendo, já foi sendo entregue. Mas esse processo eu acho que foi acelerado para a gente, muito acelerado, porque caiu a ficha muito rápido, o João tinha muita experiência, ele sabia o que queria. Quando voltou da faculdade, já tinha tudo pronto.
Hoje, sou experiente, quase um sexagenário. Mas, em certos aspectos, me sinto como uma criança. Meus pensamentos, minhas convicções, são as mesmas de quando eu era criança. Mudei, claro, adquiri conhecimento e sabedoria, mas minha visão de mundo, minha essência, permanece a mesma. Sabe a questão ecológica, a questão da música, a questão da cultura, de valorizar o que tem que ser valorizado. Isso para mim já está no DNA.
Conheci o João por acaso, e vi nele uma energia que se conectava com a minha. Acredito que as pessoas se aproximam por afinidade, por compartilharem ideais. Chamo isso de egrégora. Em Paraibuna, éramos poucos, mas “barulhentos”, porque tínhamos a arte e a comunicação para nos expressar. Eu tinha a música, e João, a imprensa. Fazíamos um “estrago”!
Por Fábio Bueno, Mestre em História